terça-feira, 20 de abril de 2010

Aqui...onde se lava o encardido com água suja

Há muitos anos que não vinha para este lado do mundo.

À minha frente uma imensidão de barracas com telhados de zinco cobertos de pó. Aqui onde domina a poeira vermelha e os montes de lixo servem para encher os buracos na estrada e se lava o encardido com água suja.
Enquanto aguardo na fila da estrada observo os milhares de pessoas que passam, cada um ao seu ritmo, muitas mulheres surpreendentemente arranjadas e limpas, as crianças de tranças com missangas e bem vestidas e os que pura e simplesmente aguardam resignadamente que venha o próximo cliente para comprar uma maça coberta de pó ou um iogurte cozido pelo sol.
Perante tanta miséria, quase uma lixeira a céu aberto onde centenas de milhares de pessoas diariamente se juntam de propósito para garanharem a sua vida, não deixo de pensar o que poderia ser feito para melhorar as condições de trabalho desta gente, reduzir os riscos de contaminação de doenças, reduzir o transito dos que se deslocam por vezes 6 a 8 horas de carro por dia. Já se pensou recensear esta gente e com o resultado construir mercados mais pequenos, organizados, com condições de sanidade e higiene, mais perto das zonas das suas residencias (entenda-se bairros de lata onde imperam os mesmos telhados de zinco cobertos de pó, cujas casas estão rodeadas mesmo na época seca de poças de água estagnada, contaminada, focos de doenças gastro-intestinais e de malária – aqui, quem não morre até aos 5 anos vive até ter a cabeça coberta de cabelos brancos – ou por montes de lixo acumulado dos meses de seca que aguardam a próxima chuva que os fará correr em direcção ao mar.
E lá ao fundo, quase na linha do horizonte, por detrás de tudo isto, primeiro avisto a baía e a linha de terra a que chamam ilha e, por fim, o mar. A ilha, aquele outro mundo, não muito melhor do que este, onde se espelham as dicotomias desta sociedade, onde confortavelemnte me costumo sentar em frente ao mar. Hoje, enquanto para lá viajo para jantar, consigo abstrair-me daquela lixiera a céu aberto por onde passo pelo caminho. Há uns anos perdia sempre o apetite quando por lá passava e, quando me sentava, frente ao mar, não conseguia apagar a imagem e o cheiro da miséria, da fome, da podridão que me rodeavam. Hoje sento-me num restaurante fantástico, ouço música que me descontrai misturada pelas ondas do mar, selecciono da ementa uma excelente refeição que poderia ser servida num bom restaurante em qualquer parte do mundo e dedico-me à conversa animada por amigos recentes e velhos amigos com quem tenho em comum a presença ali, naquele momento, mas que tudo o resto separa. Disfarço, mas no fundo nao consigo comer nada.

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