Imagine-se habitante da savana, de pele ressequida pelo sol, dependendo da água da chuva para beber, para dar de beber ao seu gado, sua única riqueza, para além das roupas que veste, de uns panos para enrolar à volta do corpo e de um eventual fato domingueiro comprado num fardo, de tecido e cor totalmente deslocados. Dono de um quimbo com algumas cubatas, casas feitas de paus e colmo, em função das pessoas que lá habitam. As últimas chuvas ocorreram há quase um ano, a estação da chuva deste ano mostrou-se tão seca como a estação seca. Mesmo que ainda chova perderam-se as colheitas de tuberculos para fazer a farinha, a base de alimentação. Por mais quilómetros que percorra com o gado em busca de água e de pasto não encontra, a situação é identica por centenas de quilómetros. O gado está magro, só se vêm os ossos e os pastores não estão em situação diferente. O calor é abrasador e seco. A família está magra e desidratada, não há poços com água, os furos ficam distantes, apróxima-se nova estação seca e a próxima época das chuvas só começa em Outubro, se tiver mais sorte do que este ano.
Ao Hospital, que fica a dezenas de quilómetros percorridos a pé, chegam mães em pele e osso, com as crianças às costas, quase desmaiadas de desidratação pois o leite da mãe secou. As que podem andar pela pela mão estão magras, sem força para mais um passo, de olhos cansados, quase sem vida, a medo e com esperança entram, aquele é o destino, conseguiram lá chegar e há expetativa de que ali acabe o sofrimento mudo da fome e da sede. Não há infância, não há escola, não há brincadeiras no pátio da escola. Já foi assim com os seus pais, avós, bisavós... por uns dias a situação poderá melhorar mas haverá sempre o regresso à seca, à falta de àgua, à falta de alimento, excepto se chover. Já conseguiu imaginar como seu único desejo de vida que chova, que tenha água, que tenha uns sacos de farinha para acalmar a fome?
quinta-feira, 22 de abril de 2010
quarta-feira, 21 de abril de 2010
terça-feira, 20 de abril de 2010
Manuel
O Manuel fazia parte de um grupo de meninos da rua que costumava estar perto do meu escritório todos os dias. Era um grupo grande, uns vendiam velas depois das aulas até as lojas fecharem, outros pura e simplesmente pediam dinheiro às pessoas que iam às compras. Eu não conseguia resistir-lhes e entre as velas que comprava, às vezes sem precisar e o dinheiro ou comida, todos os dias lhes dava qualquer coisa. Desse grupo realçou-se o Manuel, cujo nome só fiquei a saber mais tarde. O Manuel tinha um sorriso lindo, meio maroto e muito simpático, uns olhos vivos e alegres, marotos como o sorriso. Conquistou-me na sua maneira de se me dirijir numa voz doce de menino mas determinada, ”amiga, amiga, me dá só 10 para comprar um pão”... Depois, para não lhe dar só dinheiro ou comida e como o vi com um carro feito de lata muito bem construido comecei a encomendar-lhe carrinhos de lata para oferecer aos meus sobrinhos e assim já lhe podia dar mais dinheiro pois não lhe estava a dar por dar, deixou de ser uma “esmola”; como tinha jeito para o desenho comecei também a pedir-lhe para me fazer desenhos e assim quase todos os dias trocava umas palavras com oManuel, “como estás hoje? Foste à escola...? Não? Porquê? A mãe está doente... Precisas de comprar medicamentos? Não, amiga, só preciso, só preciso de dinheiro para comer mesmo... sim, mas não deves faltar à escola...” até que um dia fiquei a saber por ele que a mãe era alcoólica, percebi que o dinheiro ia em grande parte para a bebida da mãe e passei a dar-lhe só comida. E aí começou a pedir-me dinheiro para umas calças que ia exibir alegremente, ou uns tenis que usou só no dia em que os comprou, para mos mostrar. No dia seguinte, para meu espanto não os tinha calçados, é para poupar, explicou-me. Os outros, talvez por ciúme por verem que ele tinha “privilégios” vieram dizer-me que ele era o mais burro, era o mais velho (que eu não imaginava pois era muito baixo), já tinha 10 anos e não sabia escrever. No dia seguinte falei-lhe na importancia de ir à escola, de aprender a escrever, para poder ler, um dia arranjar um trabalho e sair das ruas. Contei-lhe que partiria dali a 15 dias e gostava que, antes de me ir embora, ele conseguisse escrever o seu nome. Para minha tristeza nos dias que se passaram até à minha partida ele não voltou a aparecer.
Quando regressei os donos das lojas ao pé do meu escritório tinham corrido com os miúdos pois afastavam os clientes, diziam eles... quando andava pelas ruas procurava-o e passaram-se muitos dias até que numa manhã ia a sair do carro e me aparece o Manuel, “amiga, amiga” disse, com o seu sorriso lindo. Pedi-lhe para escrever o nome dele o que fez com ar tremendamente orgulhoso. A minha estadia foi curta e não o vi mais, nem das vezes seguintes o consegui encontrar, até outro dia, passados dois anos em que me lembrava dele e pensava no que lhe poderia ter acontecido. Ouço “amiga...amiga...”. Estava escuro, era noite densa sem luar e a rua não estava iluminada... eu não queria acreditar, não conseguia falar e as lágrimas corriam-me descontrolada e insistentemente pela cara abaixo. Nem o escuro conseguiu evitar que ele percebesse as lágrimas e me dissesse “amiga, amiga, não chora amiga, não chora” e repetia atrapalhado para eu não chorar. Eu chorava de felicidade por ele estar vivo, por ter ido ter comigo. Expliquei-lhe que tinha andado à procura dele, que pensava muitas vezes nele e questionava-me sobre o que lhe poderia ter acontecido, que estava feliz por o ver. Há dois anos a sua mãe morreu e ele foi para casa de uma Tia a mais de trezentos quilómetros daqui, com a sua irmã. A tua tia tratava-te bem? Mais um menos, os primos batiam-lhe muito e a tia não o defendia. Por isso tinha voltado. E onde estás agora, perguntei, com medo que a resposta fosse na rua. Em casa da minha Avó. E a tua irmã, também? Não, a minha irmã ficou com a minha Tia, lá. E a tua Avó trata-te bem? Sim amiga, trata. Queria ajudá-lo mas ia-me embora no dia seguinte e por isso peguei em 100 Dólares e dei-lhe. Expliquei-lhe que me ia embora e só voltava passados dois meses mas não queria que lhe faltasse comida. Que aquele dinheiro era para ele guardar e usar quando precisasse de alguma coisa importante, como comprar comida se a Avó não tivesse, roupa, livros para a escola ou medicamentos. O Manuel ouvia-me e, na escuridão, via o brilho dos seus olhos e a voz doce, ainda de menino, dizia sim amiga. Agora eu vou embora, tem cuidado contigo. Sim amiga. Mas se precisares de alguma coisa vai falar com as minhas funcionárias, eu deixo instruções para te ajudarem. Sim amiga. Via-se que estava sensibilizado por tudo, pelo meu choro, pela conversa, pela minha vontade em o ajudar. Na manhã seguinte, cedo, antes de apanhar o avião, estava eu no escritório quando me vêm chamar, está aí um menino que diz ser seu amigo, quer falar com a amiga desse carro aí (o meu). Desço as escadas e vejo oManuel com o seu enorme sorriso à porta. Olá Manuel, estás bem? Sim amiga... desconfiei que queria algo e calei-me... ele manteve-se em silêncio. Ao fim de uns segundos decidi falar, então Manuel, está tudo bem, não está? Vieste cá por alguma razão especial? Sim, não, amiga, sim, vim... vim só, vim só contar no que gastei o dinheiro. Gastaste o dinheiro? Mas em quê? Eu tinha-te dito que era para guardares, poupares, para uma necessidade...? Sim, amiga, mas eu só comprei uma camisola e um telemóvel. Um telemóvel Manuel, mas isso não é bem de primeira necessidade...! (Estava zangada). É para falar com a minha irmã, que está lá...respondeu.
Imagino que a Avó do Manual lhe dá algum carinho e comida suficiente para se alimentar. Imagino também que com o dinheiro que lhe dei ele nunca pensaria ir comprar carne ou alimentos que não fizessem parte da sua alimentação diária pois é a essa que está habituado e não tendo fome não iria comprar bolachas ou um chocolate que, se calhar, desconhece. Foi comprar o que mais necessitava, o meio de poder comunicar com a irmã de quem estava afastado e de quem sentiria falta, apesar de alguma frustração minha que imaginava que as suas prioridades eram as minhas.
A Avó do Manuel morreu há 2 anos. O Manuel e um irmão ficaram entregues ao pai, que voltou...sabem os Deuses de onde... O irmão mais novo teve que ir viver com outra irmã, ainda mais longe dali. Ao longo dos dois anos seguintes ajudei o Manuel e a sua família como podia e como pensava conscientemente ser melhor. Fui-me apercebendo que ele crescia e que começava a pedir-me demasiado dinheiro. De um momento para o outro desapareceu novamente.
Quando regressei os donos das lojas ao pé do meu escritório tinham corrido com os miúdos pois afastavam os clientes, diziam eles... quando andava pelas ruas procurava-o e passaram-se muitos dias até que numa manhã ia a sair do carro e me aparece o Manuel, “amiga, amiga” disse, com o seu sorriso lindo. Pedi-lhe para escrever o nome dele o que fez com ar tremendamente orgulhoso. A minha estadia foi curta e não o vi mais, nem das vezes seguintes o consegui encontrar, até outro dia, passados dois anos em que me lembrava dele e pensava no que lhe poderia ter acontecido. Ouço “amiga...amiga...”. Estava escuro, era noite densa sem luar e a rua não estava iluminada... eu não queria acreditar, não conseguia falar e as lágrimas corriam-me descontrolada e insistentemente pela cara abaixo. Nem o escuro conseguiu evitar que ele percebesse as lágrimas e me dissesse “amiga, amiga, não chora amiga, não chora” e repetia atrapalhado para eu não chorar. Eu chorava de felicidade por ele estar vivo, por ter ido ter comigo. Expliquei-lhe que tinha andado à procura dele, que pensava muitas vezes nele e questionava-me sobre o que lhe poderia ter acontecido, que estava feliz por o ver. Há dois anos a sua mãe morreu e ele foi para casa de uma Tia a mais de trezentos quilómetros daqui, com a sua irmã. A tua tia tratava-te bem? Mais um menos, os primos batiam-lhe muito e a tia não o defendia. Por isso tinha voltado. E onde estás agora, perguntei, com medo que a resposta fosse na rua. Em casa da minha Avó. E a tua irmã, também? Não, a minha irmã ficou com a minha Tia, lá. E a tua Avó trata-te bem? Sim amiga, trata. Queria ajudá-lo mas ia-me embora no dia seguinte e por isso peguei em 100 Dólares e dei-lhe. Expliquei-lhe que me ia embora e só voltava passados dois meses mas não queria que lhe faltasse comida. Que aquele dinheiro era para ele guardar e usar quando precisasse de alguma coisa importante, como comprar comida se a Avó não tivesse, roupa, livros para a escola ou medicamentos. O Manuel ouvia-me e, na escuridão, via o brilho dos seus olhos e a voz doce, ainda de menino, dizia sim amiga. Agora eu vou embora, tem cuidado contigo. Sim amiga. Mas se precisares de alguma coisa vai falar com as minhas funcionárias, eu deixo instruções para te ajudarem. Sim amiga. Via-se que estava sensibilizado por tudo, pelo meu choro, pela conversa, pela minha vontade em o ajudar. Na manhã seguinte, cedo, antes de apanhar o avião, estava eu no escritório quando me vêm chamar, está aí um menino que diz ser seu amigo, quer falar com a amiga desse carro aí (o meu). Desço as escadas e vejo oManuel com o seu enorme sorriso à porta. Olá Manuel, estás bem? Sim amiga... desconfiei que queria algo e calei-me... ele manteve-se em silêncio. Ao fim de uns segundos decidi falar, então Manuel, está tudo bem, não está? Vieste cá por alguma razão especial? Sim, não, amiga, sim, vim... vim só, vim só contar no que gastei o dinheiro. Gastaste o dinheiro? Mas em quê? Eu tinha-te dito que era para guardares, poupares, para uma necessidade...? Sim, amiga, mas eu só comprei uma camisola e um telemóvel. Um telemóvel Manuel, mas isso não é bem de primeira necessidade...! (Estava zangada). É para falar com a minha irmã, que está lá...respondeu.
Imagino que a Avó do Manual lhe dá algum carinho e comida suficiente para se alimentar. Imagino também que com o dinheiro que lhe dei ele nunca pensaria ir comprar carne ou alimentos que não fizessem parte da sua alimentação diária pois é a essa que está habituado e não tendo fome não iria comprar bolachas ou um chocolate que, se calhar, desconhece. Foi comprar o que mais necessitava, o meio de poder comunicar com a irmã de quem estava afastado e de quem sentiria falta, apesar de alguma frustração minha que imaginava que as suas prioridades eram as minhas.
A Avó do Manuel morreu há 2 anos. O Manuel e um irmão ficaram entregues ao pai, que voltou...sabem os Deuses de onde... O irmão mais novo teve que ir viver com outra irmã, ainda mais longe dali. Ao longo dos dois anos seguintes ajudei o Manuel e a sua família como podia e como pensava conscientemente ser melhor. Fui-me apercebendo que ele crescia e que começava a pedir-me demasiado dinheiro. De um momento para o outro desapareceu novamente.
Aqui...onde se lava o encardido com água suja
Há muitos anos que não vinha para este lado do mundo.
À minha frente uma imensidão de barracas com telhados de zinco cobertos de pó. Aqui onde domina a poeira vermelha e os montes de lixo servem para encher os buracos na estrada e se lava o encardido com água suja.
Enquanto aguardo na fila da estrada observo os milhares de pessoas que passam, cada um ao seu ritmo, muitas mulheres surpreendentemente arranjadas e limpas, as crianças de tranças com missangas e bem vestidas e os que pura e simplesmente aguardam resignadamente que venha o próximo cliente para comprar uma maça coberta de pó ou um iogurte cozido pelo sol.
Perante tanta miséria, quase uma lixeira a céu aberto onde centenas de milhares de pessoas diariamente se juntam de propósito para garanharem a sua vida, não deixo de pensar o que poderia ser feito para melhorar as condições de trabalho desta gente, reduzir os riscos de contaminação de doenças, reduzir o transito dos que se deslocam por vezes 6 a 8 horas de carro por dia. Já se pensou recensear esta gente e com o resultado construir mercados mais pequenos, organizados, com condições de sanidade e higiene, mais perto das zonas das suas residencias (entenda-se bairros de lata onde imperam os mesmos telhados de zinco cobertos de pó, cujas casas estão rodeadas mesmo na época seca de poças de água estagnada, contaminada, focos de doenças gastro-intestinais e de malária – aqui, quem não morre até aos 5 anos vive até ter a cabeça coberta de cabelos brancos – ou por montes de lixo acumulado dos meses de seca que aguardam a próxima chuva que os fará correr em direcção ao mar.
E lá ao fundo, quase na linha do horizonte, por detrás de tudo isto, primeiro avisto a baía e a linha de terra a que chamam ilha e, por fim, o mar. A ilha, aquele outro mundo, não muito melhor do que este, onde se espelham as dicotomias desta sociedade, onde confortavelemnte me costumo sentar em frente ao mar. Hoje, enquanto para lá viajo para jantar, consigo abstrair-me daquela lixiera a céu aberto por onde passo pelo caminho. Há uns anos perdia sempre o apetite quando por lá passava e, quando me sentava, frente ao mar, não conseguia apagar a imagem e o cheiro da miséria, da fome, da podridão que me rodeavam. Hoje sento-me num restaurante fantástico, ouço música que me descontrai misturada pelas ondas do mar, selecciono da ementa uma excelente refeição que poderia ser servida num bom restaurante em qualquer parte do mundo e dedico-me à conversa animada por amigos recentes e velhos amigos com quem tenho em comum a presença ali, naquele momento, mas que tudo o resto separa. Disfarço, mas no fundo nao consigo comer nada.
À minha frente uma imensidão de barracas com telhados de zinco cobertos de pó. Aqui onde domina a poeira vermelha e os montes de lixo servem para encher os buracos na estrada e se lava o encardido com água suja.
Enquanto aguardo na fila da estrada observo os milhares de pessoas que passam, cada um ao seu ritmo, muitas mulheres surpreendentemente arranjadas e limpas, as crianças de tranças com missangas e bem vestidas e os que pura e simplesmente aguardam resignadamente que venha o próximo cliente para comprar uma maça coberta de pó ou um iogurte cozido pelo sol.
Perante tanta miséria, quase uma lixeira a céu aberto onde centenas de milhares de pessoas diariamente se juntam de propósito para garanharem a sua vida, não deixo de pensar o que poderia ser feito para melhorar as condições de trabalho desta gente, reduzir os riscos de contaminação de doenças, reduzir o transito dos que se deslocam por vezes 6 a 8 horas de carro por dia. Já se pensou recensear esta gente e com o resultado construir mercados mais pequenos, organizados, com condições de sanidade e higiene, mais perto das zonas das suas residencias (entenda-se bairros de lata onde imperam os mesmos telhados de zinco cobertos de pó, cujas casas estão rodeadas mesmo na época seca de poças de água estagnada, contaminada, focos de doenças gastro-intestinais e de malária – aqui, quem não morre até aos 5 anos vive até ter a cabeça coberta de cabelos brancos – ou por montes de lixo acumulado dos meses de seca que aguardam a próxima chuva que os fará correr em direcção ao mar.
E lá ao fundo, quase na linha do horizonte, por detrás de tudo isto, primeiro avisto a baía e a linha de terra a que chamam ilha e, por fim, o mar. A ilha, aquele outro mundo, não muito melhor do que este, onde se espelham as dicotomias desta sociedade, onde confortavelemnte me costumo sentar em frente ao mar. Hoje, enquanto para lá viajo para jantar, consigo abstrair-me daquela lixiera a céu aberto por onde passo pelo caminho. Há uns anos perdia sempre o apetite quando por lá passava e, quando me sentava, frente ao mar, não conseguia apagar a imagem e o cheiro da miséria, da fome, da podridão que me rodeavam. Hoje sento-me num restaurante fantástico, ouço música que me descontrai misturada pelas ondas do mar, selecciono da ementa uma excelente refeição que poderia ser servida num bom restaurante em qualquer parte do mundo e dedico-me à conversa animada por amigos recentes e velhos amigos com quem tenho em comum a presença ali, naquele momento, mas que tudo o resto separa. Disfarço, mas no fundo nao consigo comer nada.
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