No dia do pai acordámos cedo na nossa casa no meio do campo, o silêncio é enorme, não se ouve ainda a cidade ao longe e mesmo os pássaros ainda não se atrevem a cantar. Às 6 horas o sol é uma bola de fogo que vejo nascer por entre a névoa que cobre todas as manhãs a cidade. Ao seu lado a encosta abrupta do início do planalto que nos rodeia como uma ferradura e que olho ao longe sentada no alpendre enquanto tomo o pequeno almoço e ouço “Tout Les Matins du Monde”, a banda original do filme com o mesmo nome. Aqui sinto a falta das nossas idas à Gulbenkian, ao Coliseu, ao CCB... a Évora ouvir o Divino Sospiro. Vou apanhar dois ramos de alegrias brancas, um para o meu pai, que tinha chegado no dia anterior, que conforto foi vê-lo sair do avião e abraçá-lo. O outro ramo de flores entreguei a um amigo dele que me é muito querido a quem queria nesse dia especial demonstrar que me lembrei que ele também é pai.
Depois partimos no nosso todo o terreno, relíquia de família, com mais de 15 anos de buracos e centenas de milhares de quilómetros feitos por estas paisagens. Vamos visitar um amigo à sua fazenda que não fica distante, cerca de cento e vinte quilómetros que equivalem a mais de 2 horas de caminho pois a estrada a partir do quilómetro oitenta enche-se de buracos, autenticas crateras. De início, ao volante às vezes paro, hesitante, meto a roda direita ou a esquerda no buraco? Pergunto-me. À medida que avançamos começo a habituar-me, a desviar-me melhor, saio da estrada, vamos em contra mão, por vezes descubro que sem necessidade, apenas porque daquele lado da estrada me parecia haver menos buracos. Só aqui, a um sábado, no meio da savana africana, isso é possível pois chegamos a andar dezenas de quilómetros sem nos cruzarmos com outro carro. Passamos por uma pequena tabuleta à beira da estrada, rectangular, com não mais de 30 por 15 cm, com o fundo branco e um bovino pintado à mão a preto, autentica pintura rural (único, e eu sem máquina fotográfica...!) que nos indica que aquela é zona de passagem de gado. Nesse local específico não vimos nenhum mas por várias vezes cabritos e bois cruzaram a estrada mesmo à nossa frente. Os buracos até são bons, pensava então, impediam-me de ir mais depressa correndo o risco de ir contra um destes animais.
A paisagem é-me muito familiar, a primeira vez que aqui vim tinha 15 anos. Na altura foi um reencontro com a minha terra, o meu continente, a minha gente. Nesta fazenda passei então parte da plenitude dos meus dias de adolescente em África, o despertar de madrugada para ver o sol nascer e à tarde sentar-me no grande balouço do enorme jardim com um extenso e sempre verde relvado e canteiros de mil flores e cheiros para ver ao longe, no fim da savana que se estendia à minha frente, a grande bola de fogo pôr-se lentamente. Aqui aprendi a andar a cavalo numa bonita e elegante égua de um tom castanho dourado com o seu potro que insistia em perturbar-me nos meus primeiros passos de amazona tentando saltar para o dorso da mãe como que me dizendo que a mãe era dele, aprendi a andar de mota pela picada e pelos areais onde ia invariavelmente parar perante todos os funcionários que entretanto me ouviam e vinham observar entre risos e sorrisos, como conseguiria dali sair? Sem cair. Aprendi a passear touros com mais de uma tonelada para exibir em parada, na feira do gado. À hora de mais calor lia John Steinbeck ou Hemingway em inglês numa vontade ávida de dominar a língua que o meu anfitrião tão bem falava ou ia tentar ensinar palavras ao papagaio, nesse caso em português. Ao longe, sempre um rádio tocava as músicas africanas, que me ficaram no ouvido. Com o nosso amigo, dono desta fazenda que chegou a ter 100.000 hectares, aprendi a amar esta terra e as 10 espécies de erva que aqui nascem e servem de pasto, cada uma com o seu valor nutritivo e a sua função alimentar específica, corri à noite infrutiferamente pelos campos à caça de quincuios, que saltam brutalmente e, no nosso ritual, se apanham à mão, e ainda nas festas da discoteca montada na varanda sábado à noite aprendi com todas as mulheres a dançar os ritmos africanos... Esta é parte da minha África, com a sua terra cor de barro e cor de areia, de dias quentes e noites de céu estrelado arrefecidas, de fortes chuvas depois de dias de intenso calor que trazem consigo o cheiro único da terra molhada, de paisagens intermináveis, salpicadas por gente magra, simpática, vestida de panos coloridos carregando pesos impensáveis à cabeça ou vendendo artigos à beira da estrada, de crianças surgindo do meio do nada, pastando gado ou brincando, onde nada parece existir e ninguém viver, ou de gente caminhando ao domingo à tarde à beira da estrada em direcção às suas casas, com as suas melhores roupas depois de uma ida à missa ou de um dia de lazer.
Ao fim de duas horas de viagem chegamos à fazenda, a entrada feita de um túnel de acácias amarelas que estavam ainda em flor e no meio do jardim a grande árvore da paz debaixo da qual há tantos anos me sento para horas de conversa prazenteira. Antes de ir embora o nosso anfitrião dá-me gardénias, brancas, salmão e azuis, e mais alegrias de todas as cores, vamos passeando e vamos colhendo ramos de quase todas as plantas que ele tem para eu colocar no meu jardim, explicando-me o que devo fazer. Basta colocar na terra pois aqui, com este clima e esta terra, tudo cresce, diz, mas tirando-lhes quase todas as folhas para que tenham mais força para crescer.
sábado, 27 de março de 2010
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